Chegou-me às mãos a edição mais recente da Revista Teorema, de agosto de 2009. Especializada na crítica e análise de filmes, a edição de numero 14 apresenta alguns textos significativos sobre a transposição da linguagem literária para o cinema.
Enéas de Souza comemora os 50 anos do filme “Hiroshima, Mon Amour” de Alain Resnais, lembrando que a importância dada à palavra, no roteiro literário da escritora Marguerite Duras, “assegura uma dimensão absolutamente lírica à imagem poética e cinematográfica” do filme. Ao não impor um roteiro mais apropriado para a tela, Resnais promove um forte encontro do cinema com a literatura, e conjuga a palavra com os movimentos das câmeras, neste seu primeiro longa metragem datado de 1959. Marcus Mello, por sua vez, aponta a habilidade do diretor Christophe Honoré ao adaptar a trama do romance “A Princesa de Clèves”, publicado no século XVII, que se materializou no filme “A Bela Junie”. Mas vai além, e narra o endosso dado pelo filme a indignação popular, sobre a opinião do atual presidente francês com relação à obra literária de Madame de Lafayette. Segundo Mello, o filme acabou assumindo um sentido de protesto político, após a afirmação de Nicolas Sarkozy de que o livro era uma obra inútil e ultrapassada. O fato gerou um movimento de defesa a esta obra literária, cujas vendas dispararam no país. No texto crítico sobre o filme “Budapeste”, Felipe Iszlay revela sua certeza sobre a impossibilidade de se adaptar a obra de Chico Buarque para o cinema. No livro, “a linguagem verbal não está a serviço de contar uma história qualquer, mas de contar uma história em que a língua é a personagem principal”. O autor reordena o espaço do romance por meio de jogos de linguagem, trabalhando com a substancialidade das palavras. De acordo com Iszlay, o filme de Walter Carvalho faz uma caricatura mal feita da obsessão do protagonista com a palavra e o universo da língua, produzindo um esvaziamento da narrativa que obrigou a equipe de filmagem a completar as lacunas, com adendos não encontrados no livro. Ao concluir sua análise, diz que houve falta de domínio sobre a linguagem da obra, o que não trouxe vida alguma ao filme. Luiz Bernardo Pericás, por sua vez, deixa claro que o roteirista Peter Buchman não foi feliz ao também se inspirar no livro “Passagens da Guerra Revolucionária-Congo”, de autoria de Che Guevara. Sob a forma de crônicas, a obra narra episódios e reflexões sobre a guerrilha e a luta na África que, de acordo com Pericás, agradam ao leitor. No entanto, o filme bipartido de Steven Soderbergh, “El Argentino” e “El Guerrillero” se apresenta quase como uma colcha de retalhos onde, entre outras falhas, há a omissão de episódios polêmicos e a supressão de personagens importantes, o que não condiz com o espírito revolucionário expresso pela palavra de Guevara no livro.
Os críticos acima, nos fazem refletir sobre a importância de se transmitir o real sentido da palavra e da linguagem escritas, enquanto testemunhas e formadoras de emoção, informação, e vida. Cabe, porém, ao leitor-espectador dar o seu próprio aval. Mas, a partir das análises publicadas pela revista, conclui-se que Resnais embasou seu filme com a vida contida na essência da palavra literária de Duras, evitando a transposição para o cinema de uma linguagem órfã de sentido e lirismo. Quanto à “Budapeste”, de Walter Carvalho, este se mostrou incapaz de revelar a natureza da personagem central, ou seja, a palavra na língua e na linguagem. Deste modo, impediu o espectador de refletir sobre as diferentes plásticas adotadas pela linguagem, reveladas pelo livro. O filme de Soderbergh é apenas em parte inspirado na escritura de Che Guevara. Ainda assim, havendo a intenção de transportar seu testemunho para o cinema, é preciso cuidado para não se negligenciar fatos expressos pelo próprio criador de relevantes eventos históricos. Embotar a compreensão da história, impossibilita a reflexão do espectador sobre um conteúdo político-social, que só recentemente tem sido exposto. A hábil adaptação de Christophe Honoré, do livro de Madame de Lafayette, permitiu aos franceses de retomar, para si mesmos, a propriedade sobre a palavra, tanto a literária e cinematográfica como a política. Se o roteiro de Soderbergh decapitou palavras que descrevem eventos e personagens históricos, o filme de Honoré uniu-se a reação popular contra o risco de se limar a importância de uma obra inteira. A população francesa, ao esbravejar em protesto, sobre um livro que não considera ser inútil e ultrapassado, impediu a ruptura do fio condutor das reflexões e das vivências expressas pela palavra, e pela linguagem de um estilo literário renovador, trazidas do século XVII até o século XXI.